A MEMÓRIA GREGA
Constantino Comninos - Professor Universitário, Mestre em Educação e Cônsul Honorário da Grécia nos Estados do PR-RS e SC.
RESUMO
Este artigo trata de apresentar um resumo interpretativo da memória grega sob a ótica histórico-cultural. É um trabalho sinóptico abordando vários aspectos da vida grega antiga e o legado de sua herança civilizatória representou para a posteridade universal e para a formação do moderno Estado Nacional da Grécia após 1821.
Palavras-chave: memória, cidade, Estado, destino, espaços, unidade, diversidade, façanhas, identidade.
INTRODUÇÃO
“A queda do poder micênico, a expansão dos dórios no Peloponeso, em Creta e até em Rodes inauguram uma nova idade da civilização grega.” Jean-Pierre Vernant
A Memória Grega se perde nos tempos longínquos da história da humanidade. Daí ser este um tema de estudo cujos parâmetros delimitam-se a quase 4.000 anos de um processo civilizatório sem igual. Para entender a Grécia, figurativamente as grécias (Toynbee, 1981), localizadas ao tempo de alguns decênios, ou as delimitadas por alguns séculos ou ainda, as grécias englobadas no horizonte dos milênios de sua existência, necessário se faz uma catársis, ou seja, um retorno ao passado para chegar ao presente com o espírito aberto à novas descobertas, pois, a cada incursão, sempre algo de novo se descobre ou uma nova civilização se descortina. Tantas são as civilizações encontradas até o presente, e, a cada dia que passa, tantas outras ressurgem dentre as pedras escavadas, que se pode dizer sem receio que a cada momento, o espírito grego nos prega peças e nos coloca diante de novos fatos a serem desvendados. Tudo o que se encontra, é obra do destino, que os gregos de todas as grécias, tão bem souberam vivenciar.
Conhecer todas as grécias é tarefa assaz desafiante. Conquanto as descrições generalistas sejam difíceis na época em que vivemos, é preciso saber navegar em síntese por todas as áreas do conhecimento grego, para, a partir de um ponto escolhido, compreender a essência de sua grandeza e dialeticamente, poder ver com olhos críticos, todas as suas especificidades.
Não é preciso ser generalista das grécias, mas, é preciso também, mesmo que se queira abordar ou conhecer pequenas facetas de sua história, não somente escavar, mas garimpar as imagens cambiantes da inteligência humana que os gregos souberam produzir em todas as fases e perfis de seu processo civilizatório.
As civilizações têm estruturas próprias. Elas aparecem e desaparecem. Entretanto, nenhuma civilização como a grega, teve a oportunidade de legar dentro do macro cenário das civilizações, seu espírito universal. No mega-cenário mundial constituído por inúmeras civilizações, algumas delas duram alguns espetáculos enquanto outras, nem sequer mais são lembradas. Com as grécias é diferente. Nos momentos ansiosos vividos em cada escavação, por mais que o cenário se mantenha, novos espetáculos ressurgem das cinzas tal qual Fênix, e tantas outras realidades emergem com tantos outros mais paradigmas à desvendar.
Aquele que percorre atentamente as trilhas da civilização generalizadamente falando de todas as grécias, vai encontrar com certeza, muitos pontos comuns, posto que, a Memória Grega só pode ser medida, na amplitude da revolução intelectual realizada por milênios a fio, no horizonte longínquo de sua história.
O mais importante dos paradigmas gregos está na idealização de seus mitos que acompanham seu eterno destino. O primado da soberania - a vontade de decidir deterministicamente -, a cosmogonia - a idéia do universo como condutor da vida, a teogonia - a origem dos deuses -, a filosofia - fundamento da própria soberania e da justiça -, a procura do lúdico - a prática esportiva integrada à educação como Paidéia -, a idealização do belo - a estética -, foram concebidos na evolução dos grandes cataclismas quer naturais, quer produto da imaginação, que os gregos vivenciaram (Vernant, 1977).
Suas observações levaram os gregos a acreditar que o destino os conduziria à fatalidade com a destruição da humanidade, e que para salvá-la, tinham que reconsiderar os caminhos passados, reconstituindo-os em novas etapas conquistadas, com a crença de que os sobreviventes e seus descendentes, deveriam ser os responsáveis para refazer a civilização do porvir. E assim é até hoje. O atavismo que se encerra no íntimo de cada grego e o que ele sente e que é parte orgânica do ethos grego, é indestrutível. A prova deste paradigma está presente e persevera na vida de cada grego até os nossos dias, quando observamos o eterno heroismo que conduz este povo, para manter a soberania das fronteiras geo-políticas de seu território e os elementos basilares de sua organização social.
Assim são as grécias que estamos a tratar. Elas representam uma somatória de nuances interligadas, indestrutíveis, inventivas, críticas, estéticas, éticas, repletas de exemplos os mais significativos.
O pensamento grego é constituído por inúmeros acontecimentos que estão presentes e se encontram esparsos ordenadamente por toda a Memória Grega. Vale dizer, que o pensamento grego é mais do que paradigmático, haja vista, que os gregos souberam ao longo de numerosos períodos históricos, forjar suas idéias, elaborar seus pensamentos, mantendo uma linha de raciocínio lógico na ordem filosófica de suas concepções quer de vida política, econômica e social, quer quando em libações oferecidas à seus deuses, produto de uma imaginação singular..
A sociedade das grécias é própria e incomparável, pois, tudo o que seus atores realizaram naquele cenário como que esculpindo o belo, pode ser admitido pelas sociedades posteriores que utilizaram aqueles mesmos paradigmas das grécias, produto de uma ordem societária, estrategicamente imaginados.
DA CIDADES E DO ESTADO GREGOS
“A característica mais notável da Grécia antiga, a razão profunda de todas as suas grandezas e de todas as suas fraquezas é ter sido repartida numa infinidade de cidades que formavam um número correspondente de Estados.” Gustave Glotz
A polis - a cidade-estado -, foi a maior invenção dos gregos (Jaguaribe, 1982). O domínio das instituições vem desde o surgimento da polis, garantindo o primado da palavra e da justiça. Os princípios condutores da polis, se mantinham pela força de expressão e adequada argumentação nos atos decisórios do chefe - arché -, em defesa dos interesses do povo - demos. Recitar Homero ou Hesíodo - e isto se mantém tradicionalmente como prática educativa até hoje na Grécia moderna - e no conhecimento da escrita -, sempre foi e sempre será o binômio interativo da Paidéia grega, isto é, a educação integral do homem-cidadão, independente de ser grego livre, servo ou mesmo estrangeiro que conviva no território da Cidade-Estado.
A Polis é representada também por um universo espiritual, cujo destino é a essência de seu comportamento social, onde as relações entre os homens, tomam formas originais de alto sentido público. Para discutir as leis e promulgá-las, os gregos redescobriram os meios que iriam manter a sua subsistência para depois reencontrar as “artes que embelezam a vida”. Na organização da Polis, acrescentaram a Sabedoria “que tem por objeto as realidades divinas” (Vernant, 1974) .
Desejar conhecer as grécias, mister se faz percorrer sua paisagem física. Os mares que banham o território grego, cujo desenho parece o perfil peninsular da mão do destino que adentra para o mar, favoreceu a sociedade das civilizações gregas para a ocupação de todos os pontos de sua peculiar geografia vulcânica e pedregosa, esta, misturada ao colorido diáfano azulado de seu céu límpido e na transparência de suas águas cristalinas.
Como a Grécia dos dias de hoje é muito observada pelas pedras que compõe sua paisagem, essas mesmas "pedras falam” de sua história. Foi nas pedras da Grécia que o cinzel do artista deixou a marca de seu desenho estético, aceito na transmissão da praxis como ética representativa da obra concebida. Foi nessas mesmas pedras, graníticas ou marmóreas, que os gregos dessas grécias entalharam os seus pensamentos éticos. Nessas mesmas pedras que falam por si só, encontramos o que há de melhor produzido pelo espírito humano, em que pese as adversidades do território, vulcânico por natureza, com áreas agricultáveis limitadas, com planícies esparsas e montanhoso em sua maior extensão.
DO DESTINO GREGO
“A necessidade de defesa mútua, ... exprime-se, como tudo o que é social na Antigüidade, sob forma religiosa. Cada cidade tem sua divindade, tal como cada família tinha a sua.” Gustave Glotz
O destino é uma atitude deificante para os gregos. Todas as suas adversidades, recorrendo aos deuses de sua imaginação, os gregos souberam superar com o pensamento e com obras, todas as vicissitudes do destino que os gregos das grécias tiveram que se defrontar ao longo dos milênios de sua existência.
Considerando que o título utilizado para estas considerações, tem como ponto de partida o título genérico de Memória Grega, nos obrigamos a fazer certas distinções que se está a utilizar neste texto, para melhor se fazer entender o tema em si.
Explico. Como se vem notando, diria, que tratar da Memória Grega, não é tarefa das mais fáceis. Exige do estudioso, muita atenção, para não se perder nos meandros de suas armadilhas, muito bem construídas por todas as civilizações que pelas grécias se desenvolveram. Ao percorrer os inúmeros corredores que compõem o labirinto das concepções de vida das grécias, é preciso permear os princípios que fundamentam a vida societária das várias Cidades-Estado da época Clássica, e até das civilizações palacianas que as antecederam em todos os períodos ex-ante e ex-post (Mumford, 1965) .
Há um legado histórico, que pode ser considerado como uma herança, cujos valores, transmitidos de geração para geração, levou os gregos de todas as grécias a criar a organização da sociedade ideal para os homens. Para tanto, em todos os períodos que foram o palco de cenários onde os atores políticos e os estrátegos desempenharam seus papeis, desencadeando lutas entre as Cidades-Estado, serviram para tornar os gregos mais hábeis lúdica e intelectualmente, a ponto de estabelecer com o tempo, regras que foram seguidas em toda a estrutura de suas concepções ideológicas.
Alguém pode se perguntar, o que são afinal as grécias citadas neste texto?!... As várias grécias que se está a tratar, por mais que elas estejam presentes em ocasiões dispersas e em episódios distintos, têm uma identidade própria, para não dizer, uma única identidade.
Os gregos que viveram e os que antecederam a época clássica, assim como os gregos do período helenístico - ou pós alexandrino -, mesmo na decadência com a ocupação romana, ou os gregos bizantinos pós Constantino, os gregos de bizâncio que enfrentaram os francos e os otomanos, estes, até e após a Queda de Constantinopla em 1454, os gregos revolucionários idealizadores da “grande ideia”, isto é, os que lutaram pela Independência a partir de 1821 e os gregos que institucionalizaram o Estado Moderno Grego, com todas as fases de adaptação até os nossos dias, têm uma identidade própria, que é só deles e indissociável em sua personalidade.
Para garantir essa identidade, os gregos souberam superar as confrontações que o destino lhes conduziu porque tinham pontos comuns que os levavam a um auto entendimento, primeiramente, pela organização de suas polis - transplantada em muitos segmentos que englobavam os princípios norteadores da vida grega e levados modernamente para dentro das cidades e vilas da atualidade -, e pela língua que falavam - contudo existir uma rica dialetologia geograficamente distribuída.
DOS ESPAÇOS CONSAGRADOS
“Não existe melhor lugar, para, num confronto, mostrar a relação paradoxal entre o espírito e o corpo através do qual aquele se expressa, o corpo social que se torna uma paisagem humanizada ou uma cidade, do que a polis grega e, acima de tudo, Atenas.” Lewis Mumford
Seguindo os caminhos que levam à identidade grega, os gregos criaram inúmeros deuses que adoravam em situações diferenciadas (os mesmos deuses em todas as cidades), ou os mitos, sacralizados e consagrados até os dias de hoje. Essa identidade tem uma força eterna nos espaços que os gregos criaram nas suas Cidades-Estado como as ágoras, os teatros, os estádios e as palestras, hoje integrados naturalmente na paisagem das vilas, das cidades e das metrópoles modernas da Grécia contemporânea.
Mais. Os gregos souberam fazer prevalecer suas instituições sociais, passando pelas formas de governo, sistemas econômicos e regimes políticos que utilizaram para desenvolver e determinar os princípios que nortearam sua concepção idealista de política para todos os homens do seu universo, invenções essas, consagradas pelo Mundo Ocidental e presentes, pode-se dizer, na atualidade do nosso cotidiano.
Nas ágoras, as atuais praças, os gregos discutiam, utilizando este espaço como assembléia permanente para filosofar, estabelecer as regras de governo e de conduta, comerciar, e pela força do voto, eleger e destituir os governantes, pois, esta área nobre de suas Polis, era o ponto ideal para a construção de inúmeros edifícios públicos, com galerias que permitiam durante as estações chuvosas, nunca deixarem de se reunir. Aliás, essa prática de espaço aberto à assembléias, também era utilizada nos acampamentos militares (Mumford, 1965).
Nos teatros abertos - conhecidos como anfiteatros -, os gregos apresentavam suas peças em festivais religiosos em honra a Dionísio, onde salientava-se o drama e a comédia. No drama - tragédia -, além do sacrifício libatório, as representações traziam à público o mais profundo sentimento humano, quer quando retratavam as questões palacianas na disputa pelo poder, quer quando referiam-se às questões rurais de sua sociedade. Seus ensinamentos penetram profundamente na psichê humana, a ponto da psicanálise moderna, utilizar sua conceituação mais profunda para a explicação e posterior solução dos dramas pessoais e coletivos da humanidade. Na comédia, a crítica ao poder constituído era representado com ironia, laconicamente, contudo a presença obrigatória dos governantes nos anfiteatros, palco natural desses festivais libatórios.
Nos estádios, além da busca espiritual e na prática do lúdico, o espírito olímpico era desenvolvido. Esses encontros eram sistematicamente periodizados no tempo, e institucionalizados como festivais religiosos dedicados aos deuses, com leis próprias, severas quanto ao desempenho dos atletas que vinham de todas as grécias, para numa espécie de trégua de seu conturbado universo, se permitirem encontrar soluções para os problemas globais que os afligiam. A cada quatriênio, intercalados por festivais lúdicos similares desenvolvidos em outros centros da Grécia Continental, prevalecia a pax helênica.
DA UNIDADE NA DIVERSIDADE
“A cidade antiga é, pois, acima de tudo, um teatro, no qual a própria vida comum adquire os caracteres de um drama, engrandecidos pelo próprio artifício do costume e do cenário, pois o próprio cenário amplia a voz e aumenta a estatura aparente dos atores.” Lewis Mumford
Percorrendo os caminhos de suas descobertas, os estudiosos que vêm garimpando o território grego na busca de compreender o pensamento daquelas civilizações, encontraram tanta similitude em meio a tanta diversidade, que o processo civilizatório grego, como dissemos, é incomparável com o de outras civilizações. Para tanto, subdividiram as camadas arqueológicas com títulos como Período Heládico I, II, III, Fase Heládica Inicial ou Média (Idade do Bronze), Micênico I, II, Minóico Tardio II, Tróia V, VI, e daí a fora (Toynbee, 1970).
Não é difícil entender o porque desta preocupação didática para o conhecimento das grécias, pois, as colônias de suas Cidades-Estado, resultado da expansão imperialista desencadeada na conquista de outras terras, algumas longínquas de sua base orgânica, podiam estar situadas do Peloponeso ao Épiro, de Creta às Cícladas, da Ática à Ásia Menor, como a cidade de Bizance fundada cerca de 900 anos a. C. às margens do Bósforo, perto do Mar Negro, como colônia dos Megaritas, Cidade-Estado essa, localizada cerca de 50 Km ao sul de Atenas, que viria a ser o sítio privilegiado pela sua situação geográfica, para a fundação da Cidade de Constantinopla em 330 d. C., como sede do Império Romano do Oriente, e que deu o nome ao Império Bizantino que só ruiu em meados do século XV da era Cristã.
Outro exemplo que prova o significado da divisão arqueológica citada, é que encontram-se na ilha de Rhodes vestígios de povoados micênicos e minóicos.
Por outro lado, observe-se que os gregos falantes da língua grega, ainda hoje utilizam sob a forma de grego moderno, a mesma língua, assim estruturada, que remonta, pelo menos, 2.000 anos a.C.. Entre tantos exemplos que podem ser citados, lembro, que quando ocorreu a queda de Cnossos, em Creta, cerca de 1400 a.C., havia um comércio bilateral entre o Mundo Micênico e a Síria, classificado no Período Heládico Tardio III, conhecido como Micênico II (Toynbee, 1980).
Com a descoberta da escrita das “tabuinhas” de Cnossos, encontraram-se muitas semelhanças com o Linear B ligado a Civilização Micênica, esta, retratada por Homero na Guerra de Tróia (Vernant, 1997).
DAS FAÇANHAS GREGAS
“As revoltas nascem de minudências mas não visam minudências: sempre grandes objetivos.”
Aristóteles
Outro ponto expressivo das grécias que é parte da Memória Grega, são as façanhas dos gregos. De heróis e deuses, a Grécia está repleta. As inscrições imortalizadas em suas pedras, em sua cerâmica, em seu bronze, no ouro de suas jóias, falam e retratam sua vida e seu destino, estética e eticamente, portanto, a origem e o fim de cada homem e de suas realizações.
Um dos aspectos mais significativos que ilustra a existência da Grécia Moderna como façanha histórica e não menos grandiosa, é o fato que da segunda metade do século XII d.C., para a frente, os gregos da Grécia Bizantina estiveram sob uma pressão crescente dos Cristãos Ocidentais de um lado e dos Turcos Otomanos de outro.
O Império Bizantino destacava-se - e seus pósteros ainda destacam em muitos segmentos, sua grandeza econômica -, geopoliticamente localizado na encruzilhada do mundo o que lhe dava vantagens estratégicas que via de conseqüência, garantia sua posição comercial, portanto, era muito rico para não ser admoestado, só que também, sua estrutura social que teve períodos de decadência, levou-o à vulnerabilidades militares que foram exploradas pelos seus inimigos e falsos amigos, historicamente comprovadas.
Abrindo um parêntesis, pode-se dizer, que as grécias são o resultado de heranças, legadas de uma Grécia para outra, onde os gregos, fossem micênicos, minóicos, jônios ou cicládicos, gregos do Épiro ou macedônios, gregos helênicos, gregos bizantinos ou, na contemporaneidade, gregos modernos, sempre tiveram que conviver e exercitar, como todas as civilizações, seus sucessos e fracassos.
Outra façanha que caracteriza os gregos é a luta pela sua liberdade. Por mais que no horizonte dos milênios de sua existência, contudo a democracia ateniense até o presente esteja dando lições políticas e os períodos autoritários tenham tido presenças intermitentes nas cidades-estado, os gregos sempre souberam pugnar no caminho que os levaria ao encontro das formas mais democráticas de vida política, econômica e social.
Desde as épocas pré-homéricas, dos caminhos de Ulisses, ou repelindo invasões estrangeiras, no alvorecer do Mundo Clássico, passando pela unificação dos Estados Gregos - cidades-estado -, com e pós Alexandre Magno que levou o helenismo aos confins do mundo de sua época, pela palavra evangelizadora de São Paulo e a cristianização do mundo civilizado pelos gregos com incursões pelo mundo bárbaro - segundo os gregos, todos aqueles que não gregos ou que não tenham sofrido a influência da helenização -, entrando pela Era Bizantina, e, com a queda desse Império, a luta para a expulsão do invasor turco-otomano que na Grécia se estabeleceu por cerca de 4 séculos e a luta desencadeada para a conquista da Independência Política na Era Moderna, os gregos continuaram a lutar sem esmorecer até hoje, para garantir suas legítimas fronteiras e sua soberania nacional.
Englobados em uma cadeia de fatos que o determinismo grego facultou, vejamos alguns pontos que contemplam o conceito de identidade helênica na atualidade, como façanhas desencadeadas pelos gregos modernos, capítulos de alta significação de sua história.
Em plena era dos nacionalismos, os gregos anatólios aliados aos gregos continentais, utilizando estratagemas políticos e militares, ambicionaram ressuscitar o Império Romano do Oriente e de restaurar Constantinopla, outra vez, como sua capital. Ressalte-se que potências européias, interessadas em enfraquecer o nacionalismo turco, incentivaram essa façanha, que foi um dos fracassos dos gregos modernos, pelo próprio fato dessas mesmas potências não cumprirem seus acordos. Daí resultou a maior das sagas dos gregos modernos, quando mais de dois milhões de gregos se refugiaram na Grécia Continental e algumas de suas ilhas, em um esforço sobre-humano do Governo Grego, que atendeu a todos os gregos anatólios que se evadiram de território turco (Toynbee, 1980).
A “congregação” do povo grego dentro das fronteiras de um Estado Nacional, foi realizada em estágios ao longo de aproximadamente 130 anos, com perdas cruéis à população das zonas de guerra, onde os gregos e os turcos tinham vivido geograficamente mesclados até serem separados pelos massacres e expulsões ocasionadas pelas hostilidades. São elas: (1) a Guerra da Independência (1821 a 1829), (2) as Guerras Balcânicas (1912 a 1913), (3) a Guerra Greco-Turca, que teve como teatro de operações a região da Anatólia, saga esta acima citada e (4) a Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945).
Em todos esses estágios, não tanto episódicos, notou-se uma heróica resistência do povo grego (1) à seus governantes otomanos, (2) contra às idéias expansionistas de seus vizinhos fronteiriços balcânicos, e que ainda está latente naquela região, (3) quanto ao esforço nacional para o estabelecimento de refugiados após a derrota na guerra na Ásia Menor, e (4) contra os exércitos invasores que desencadearam a Segunda Grande Guerra do século XX, produto das ideologias totalitárias européias, períodos esses, onde os gregos participaram ativamente.
Ocupando lugar de destaque no concerto mundial, a Grécia é membro de inúmeras organizações internacionais, inclusive membro da União Européia desde o início do decênio dos anos 1980, reconhecida que é pelas nações do mundo, como um baluarte da paz universal.
Este fato é notável em todas as manifestações em que a Grécia participa.
DA IDENTIDADE GREGA
“Todos os seres humanos atualmente vivos têm uma herança de igual extensão. Os gregos modernos tiveram de digerir um passado bizantino e um passado helênico, e as atitudes bizantinas e helênicas diante da vida são não apenas diferentes entre si, mas são também antitéticas.” Arnold Toynbee
A identidade grega, como se pode observar, é um conjunto de fatos isolados agindo em interação permanente. Cito alguns pontos para que se entenda onde atualmente as grécias estão presentes e onde a Grécia atual como um todo, mais se identifica . Nenhum grego moderno “abandona” sua vila. Pode emigrar, ir para os mais longínquos rincões do planeta, viver em centros urbanos maiores dentro da Grécia Continental ou mesmo em cidades maiores de suas ilhas, mas, onde quer que ele esteja, vivendo no exterior, seu pensamento estará voltado para sua comunidade de origem como se fora sua pátria. Exemplificando: se o cidadão é natural de Corinto e viver em Atenas, ele sempre que puder, irá rever seus parentes e amigos em seu lugar de origem. Significa dizer que o "xorió" - aldeia, é sua terra natal e não a troca por nada neste mundo quer em espírito quer em matéria. É o destino atávico de todos os gregos e de seus descendentes.
Quanto a sua vivência comunitária, o grego se organiza em "Kinótitas”, ou seja, associações, que tem não apenas uma função recreativa, mas, acima de tudo, uma representatividade política, social e cultural. E isto vale não apenas para as comunidades da Grécia, mas para todo o aglomerado de gregos que vieram a se estabelecer fora da Grécia.
Foi nessas “Kinótitas”, introduzidas na vida grega pela “Fliki Eteria” - a associação de amigos da grande causa -, onde clandestinamente se desenvolveu a “grande idéia” e preparou o povo para lutar pela Independência. Tudo isto aliado a uma força ideológica baseada no cristianismo, tendo como baluartes as igrejas e os mosteiros com suas escolas clandestinas, onde se ensinava (1) a língua grega, (2) a religião cristã e (3) o civismo pátrio, elementos fundamentais e idestrutíveis que garantiram o sucesso da causa e a cultura de um povo que sempre pretendeu manter-se presente sobre a terra e transmitir seus valores às gerações futuras.
Cada grego ou seu descendente, ou aqueles aculturados aos valores helênicos, e aqueles não gregos que amam as grécias, têm dentro de si, o orgulho de ser grego, viva ele em território grego ou em qualquer ponto distante desta festejada "era da globalização". Por mais que as vissicitudes do destino tentem impedí-lo, jamais um grego ou mesmo um amante da Grécia esmorecerá, pois, cada qual tem dentro de si um atavismo profundo, que estabelece o elo de ligação à seus ideais, traçados ao longo de vários períodos históricos em estágios os mais diversos mas integrados à todas as grécias. E este é o processo interativo peculiar a todos os gregos, por fazer parte de uma cultura, determinado pela incorporação do ideário grego, e parte indissociável de seu ethos que é catártico e paradigmático.
Exatamente por utilizar a catársis e os paradigmas, os desafios que os gregos enfrentam nos passos de sua existência, cujo destino foi imposto pelas leis de sua herança cultural, qual seja, o destino de ser grego, coloca-os diante das realidades humanas com óticas próprias. Ter um pé na (1) Grécia Clássica, outro no (2) Mundo Bizantino e na Doutrina do Cristianismo, falando (3) a mesma língua, manifesta o orgulho helênico, porque dessa herança, os gregos e seus descendentes puderam fundamentar os princípios que institucionalizaram as bases cívicas, éticas e patrióticas exercitadas na praxis do Estado Moderno Grego, elementos estes representam o primado que firma a sua identidade como gregos modernos.
CONCLUSÃO
“Uma cidade que é de um homem apenas não é cidade.” Haemon, in Antígona
Como foi acima aludido, a vida grega é uma eterna catarsis e paradigmática por natureza. Essa catársis e esses paradigmas que fazem parte da Memória Grega, contemplam um rico universo com sentidos próprios no peso que cada palavra contém e que os clássicos atribuíram com muita felicidade aos atos da humanidade. Assim, aretê - virtude, nómos - lei, dikê - justiça, demos - povo, koinonía - comunidade, philia - amizade, sophrosyne - moderação, cosmiotes - ordenação, geometriké isotes - igualdade geométrica, homoiotes - similitude, isorropia - equilíbrio, isonomia ton dynámeon - equilíbrio dos poderes, physis - natureza, sophia - sabedoria , lógos - palavra, hierós - sagrado, philosophia - filosofia, homoioi - semelhantes, laós - povo, dynamis - movimento, anomia - fora das normas, pístis - fé, paidéia - educação, e tantas mais palavras que dão significado a tantas outras mais ações humanas, que cada ser humano vivencia até hoje e que são utilizadas não só no vocabulário comum, mas nos atos do cotidiano, como “animais sociais” ou “homens políticos” que cada ser humano é constituído, conforme Aristóteles soube tão bem conceituar.
Ter uma participação ativa, permanente, no culto à sua herança, quer clássica, quer bizantino-cristã, coloca cada grego, a todo momento de sua existência, diante de desafios permanentes, porque este também é o seu destino. Como também, cada grego sabe, que para garantir o mantenimento dos valores culturais como gregos modernos, depende desta postura, para não ser açodado pela fatalidade de deixar de existir. Esta postura é o que vem garantindo o princípio de responsabilidade para com a sustentação e para com o triunfo da Memória Grega em todos os cenários de sua universalidade. Esta somatória de fatos é o seu maior galardão, pois a Memória das grécias reflete-se no concerto de um sistema global, porque deixou de ser só uma idéia, para se tornar um ideário de vida para todos os gregos que vivem na Grécia e em todos os rincões desta "aldeia global".
REFERÊNCIAS
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LIVROS QUE CONTAM A HISTÓRIA DOS GREGOS NO BRASIL